Uma parte de mim
Uma parte de
mim está onde tu estás, é a brisa que te cumprimenta quando sais pela
manha, essa brisa que te sopra devagar e faz mais leves e mais livres os
teus passos.
Uma parte de mim é a luz paciente do sorriso que
ofereces aos que sofrem, aos que esperam, mas sobretudo aos que
interrogam, aos que nunca desistem de procurar, àqueles que não
disfarçam a fome de saber.
Uma parte de mim é o decidido caminho
que tomas quando tens de escolher entre vários, e a tua intuição é,
nesse momento, talvez a coisa mais importante que há no mundo.
Uma parte de mim é o teu profundo olhar sobre o pequeno mapa da grandeza
humana, a mais rápida forma de medir a distância das estrelas no
limitado universo de cada um de nós.
Uma parte de mim é a tua
sombra, essa estreitíssima sombra que voa nas asas jovens do arroz, onde
o desejo continua a escrever doridas cartas de amor para uma alma
líquida que flutua, ferida, sobre as tuas colinas interiores.
Uma
parte de mim é o lobo que roçaga as tuas pernas, que te acompanha e te
protege, mas que não vês, não sentes, não sabes, e não tens consciência
sequer de o ignorar.
Uma parte de mim é uma parte de ti, uma sede
longínqua, longa, repleta do que a cada um de nós apetece, do que cada
um de nós necessita, do que a cada um de nós pertence, essa sede que faz
mais justos os teus gestos e mais demorados os teus beijos.
Uma
parte de mim acorda quando tu partes e deita-se quando tu chegas, é o
anjo que tem o sorriso franco dos mais pobres e a alegria dos sinos que
acordam as raízes da infância.
Uma parte de mim é a canção que tu
cantas nas longas caminhadas junto ao mar, a erva indefesa que tu
pisas, a dor que sentes por ter acordado uma vez mais num tempo injusto,
o pensamento branco que diriges até Deus.
Uma parte de mim é
tudo o que rejeitas, tudo o que te fere, tudo o que te queima, tudo o
que te é insuportável. Tudo o que ainda não é capaz de merecer-te.
Joaquim Pessoa,
*
in O Poeta Enamorado
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